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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Catchup na camisa e olheiras na alma

...o silêncio torna tudo menos penoso; 
lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: 
adeus.
Rubem Braga em, A Traição das Elegantes


De vez em quando olhava o celular e falava as horas para si, pensando que se repetisse varias vezes, ficaria mais fácil acreditar. Algo estava atrasado. Deu pra perceber pela mão batucando na mesa, pelo pé batendo no chão e pelos olhos observando atentamente cada ser que entrava no lugar. Aliás, que lugar lindo, desses de filme, com cadeiras almofadadas, daquelas que da gosto de escorar e relaxar, um blues tocando ao fundo, nem sinal de televisão por perto, uma moça querida pra atender, e uma torta de maçã deliciosa que só perde pra da minha avó. Apesar do barulho de pessoas me irritar, hoje tudo me agrada, até o murmúrio das vozes conversando sobre a cor da cueca do vizinho, ou sobre o novo penteado horrível da síndica. Eu procurei e observei todos os rostos, todos os sorrisos, todos os olhares, mas só o dela me chamava de tal forma, só o dela implorava pela minha atenção.
Ele era aflito. Nervoso.
Os pés agora batiam num ritmo mais acelerado indicando que, o que quer que ela estivesse esperando, estava bem atrasado.
Eu já estava acabando meu suco quando o barulho da porta chamou a atenção, como se fosse eu quem estivesse esperando pelo tilintar do sininho. Ele caminhou como se estivesse indo de encontro à cadeira elétrica em pleno corredor da morte. Me senti familiarizada, a ponto de soltar um risinho de canto de boca, com as olheiras intrusas naquele rosto magro e sem expressão. O cabelo despenteado e a barba por fazer, as roupas desleixadas e eu podia jurar que aquilo na camiseta era mancha de catchup.
Foi então que eu percebi o olhar, antes perdido, dela. Se antes ela estava batucando na mesa, agora eu podia jurar que ela estava fazendo um solo de bateria e que na imaginação dela aquilo era a cabeça do cara que, agora, estava puxando a cadeira aconchegante para se sentar frente a frente àquele olhar.
Eu ia me levantar, mas eu já ia tanta coisa na vida que, por 3 segundos, pensei bem e decidi que mais uma vez, eu não ia. Assim como eu ia chover semana passada, como eu ia ser sol depois disso e acabei sendo garoa que nem molhou o asfalto e sem arco-íris depois. Então, me recostei um pouco mais e pedi mais um copo de suco e um pão de queijo, "não não moça, dei uma espiada nos olhares trocados na mesa que me interessava, três pães de queijo moça, por favor".
A música trocou, o copo de suco trocou, o senhor da mesa ao lado trocou e os olhares daquela mesa trocaram.
Ele era frio e ela derretida, ele implorava por silêncio e ela implorava por palavras. Ele pediu chá, bolinho inglês e manteiga. Ela pediu café, sonho e um biscoito com nome esquisito e impronunciável por alguém que tenha morado na Rússia por menos de 3 anos.
Eles eram tão diferentes, tão distantes um do outro que parecia existir uma galáxia entre os dois. Mas a mancha de catchup combinava com o sapatinho vermelho dela e a camiseta poa com o all star preto dele.
Porque então ela comia o cérebro dele com os olhos? Porque ele tinha cara de morto-vivo? Porque eles estavam ali?
Meu segundo pão de queijo acabou, meu suco ainda está pela metade mas, da minha paciência resta apenas alguns goles.
Eles discutiram, sem gritar, sem fazer cena, sem espernear e quebrar pratos, xícaras e porta-retratos. Qualquer outra pessoa nesse lugar não diz que eles estão brigando, até eu duvidei que aquilo fosse uma briga até ela tirar o anel de noivado, por sobre a mesa e pedir a conta.
Uma galáxia e meia agora. Talvez duas.
Ele era estátua. Gelo, pálido, sofrido e choroso. Deu vontade de sentir pena, deu vontade de abraçar e dizer que vai ficar tudo bem, deu vontade de levar pra casa e limpar a mancha de catchup.
Meu terceiro pão de queijo acabou, do meu suco restam 2 ou 3 goles e o que eu queria mesmo era pedir pipoca grande para assistir le grand finale, mas pedi a conta.
A conta do casal chegou antes, ela pagou e saiu. Fria, rastejante e podia jurar que aquilo no seu rosto era uma lágrima. Mas não chegou a ser. Ela levantou a cabeça arrumou a bolsa e continuou caminhando. O sininho da porta fez ele perceber que ela tinha ido mesmo, rastejando porta a fora, vida a fora, galáxia a fora.
Ele mexeu no anel, guardou no bolso e da mesma forma que entrou, saiu. Sem expressão, sem riso, sem choro, apenas mancha de catchup.
Minha conta chegou e eu queria chorar no ombro da moça, mas só a paguei e me levantei.

Algumas dores são assim, frias, curtas e nos afastam galáxias da outra pessoa.
Mas eu podia jurar que o casal ia provar que, a atração dos polos positivos e negativos não funciona só para imãs.
 

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